13 de abr. de 2014

O que Game of Thrones pode ensinar sobre política [LIBERTARIANISMO CULTURAL]


“As Crônicas de Gelo e Fogo” é uma série de livros épicos escritas por G. R. R. Martin cuja quarta temporada de sua adaptação para a televisão (intitulada Game of Thrones) estréia hoje na HBO. Passado nos continentes de Westeros e Essos, contando, entre diversas subtramas, a luta entre as diversas famílias para ocupar o Trono de Ferro (símbolo máximo do poder no Reinado). Com uma temática como a em questão e um escritor pautado por uma trama realista como Martin, a história acaba por abordar uma série de elementos de política e economia que refletem o despreparo do aparato estatal para lidar com os problemas da população. Mesmo que não seja explicitamente libertária, não se pode deixar de notar os muitos elementos da defesa da liberdade existentes em cada pequeno detalhe da obra.
O viés crítico ao governo já pode ser mostrado na concepção dos personagens. Optando por não dividir aqueles que pleiteiam o Trono em “heróis” e “vilões”, a escrita de Martin é audaz em demonstrar que cada um dos personagens se encontra em um linha tênue entre essa visão em preto e branco da realidade. Essa visão pautada no realismo serve como forma de humanização daqueles que almejam o poder, fazendo com que o leitor claramente perceba que – por mais que acredite que um ou outro poderia ser um rei melhor -, o conflito diga mais respeito aos interesses individuais de cada personagem do que a uma suposta busca pelo “bem comum”.
Sendo oportuno que tanto na literatura quanto na televisão sejam mostradas inúmeras cenas da população sofrendo para tentar viver num momento de dificuldade, enquanto os monarcas fazem o possível para destruir as casas e queimar as plantações de seus súditos (não por acaso, a direção da série opta comumente por efetuar enquadramentos em que é possível perceber o rosto entristecido de personagens que pouco acrescentam em termos narrativos). E a palavra “súdito” é utilizada aqui por conter dentro de sua própria origem etimológica (do latim, “subiectus”, pessoa sob o controle ou domínio de outra) a população que, em teoria, deveria servir em uma clara posição de inferioridade àqueles que detém o poder. Mesmo que eventualmente as elites efetuem obras que podem servir para proteger a população, como muralhas, o próprio livro deixa claro que aquilo que eles realmente buscam é se proteger de invasores. A população é só um objeto secundário de uma política que, buscando emprestado um pouco da escola econômica da escolha pública, o maior objetivo é maximizar o bem-estar dos monarcas.
É perceptível que, na maior parte do tempo, aqueles que almejam Trono de Ferro apenas se importam com os seus súditos na medida em que devem explicar os motivos que supostamente possuem para estarem em uma posição de dominação. Com os critérios para a delimitação do poder tão elásticos, em determinado momento vemos cinco personagens admitindo possuírem legitimidade para ser o próximo rei. Sendo irônico que até mesmo aqueles que se dizem herdeiros legítimos de Robert Baratheon (o último monarca vigente) possuam um argumento ocasional, pelo próprio Robert não ter nascido rei e só ter conseguido o posto após a deposição de um reinado século dos Targaryen (e que também foi estabelecido por meios coercitivos). Num dos diálogos mais marcantes da obra, um dos personagens afirma que o poder reside onde as pessoas acreditam, de forma que aqueles que o almejam necessitam arranjar justificativas que convençam os demais a razão de possuírem legitimidade para tanto (gerando uma indagação sobre as justificativas românticas da noção de democracia não serem da mesma forma um mero mecanismo para a manutenção do poder vigente).
O trunfo dos candidatos ao trono é justamente o de conseguirem servir como um símbolo para fazer com que outras pessoas lutem por seus ideais. Eventualmente, em um grande eufemismo, muitos desses líderes acabam por sucumbir, gerando no leitor ou espectador um misto de tristeza ou revolta que o faz perceber em um nível microscópico os estragos provenientes de um estado de guerra e o fazendo imaginar em que estado se encontram os familiares inúmeros dos súditos aniquilados na guerra civil (sendo grande parte do sucesso da obra a sua habilidade de trazer a tona os sentimentos de perda oriundos desses conflitos). Um momento que consegue traduzir este caráter simbólico trazido pela figura do rei é aquele que um dos que almejam a coroa é assassinado pouco antes de uma batalha, deixando um exército enorme sem a coesão para guerrear. O texto é ágil ao relatar que o batalhão em nada se modifica sem a sua liderança (por ele não ser um grande combatente ou líder de batalhas) e que, caso fosse do seu interesse, poderiam enfrentar seu inimigo e o derrotar da mesma forma, devido ao seu alto contingente numérico, mas a ausência da figura de união os retira da batalha, fazendo com que as tropas se unam àquele que outrora era inimigo (por este figurar como a nova figura de coesão entre eles).
Outro tema recorrente é como os detentores do poder são demonstrados como pessoas cujo principal objetivo é o de aumentar a sua esfera de alcance. A narrativa é hábil ao retratar a família mais rica da obra, os Lannisters –  aquela que esteve durante séculos ao lado do reinado dominante, feito que conseguiu manter mesmo durante a queda da antiga monarquia, demonstrando que de nada importa o poder econômico se não estiver aliado ao político. Da mesma maneira, a capital do reinado, Porto Real, é descrita como um local permeado por intrigas políticas, a ponto de a espionagem se tornar um modo corriqueiro de se obter informações. Não à toa, a única família cujo objetivo não é a expansão de poder a todo custo, os Starks, é justamente aquela que acaba sofrendo consequências drásticas por subestimar as capacidades de seus oponentes, demonstrando que a própria natureza do jogo político é a de selecionar de forma natural aqueles que se demonstram mais aptos a mantê-lo (espectro retratado em determinado momento de forma bem crua na magnífica frase: “Quando se joga o jogo dos tronos, ou você ganha ou você morre”).
A incapacidade dos governantes em promover uma economia sadia é também demonstrada quando se percebe que, mesmo com a ameaça de um ciclo produtivo menor com a chegada do inverno rigoroso (agravado pelo fato de que as estações possuem uma duração de anos no universo em questão), todos os gastos são resumidos num desenvolvimento do aparato bélico (cujo uso inevitavelmente leva à destruição de propriedade e diminui a produtividade). O déficit da Coroa é relatado como impagável e a única preocupação daqueles que o deveriam administrar é como postergar ainda mais a dívida pública por meio de operações com os grandes banqueiros. Mesmo que Martin não seja um autor com um profundo conhecimento econômico, não é difícil perceber que esta política de mal-estar social (com aumento dos gastos e diminuição da produção) gera como consequência imediata um efeito inflacionário.
Enquanto essa luta por poder corrói Westeros, com o passar do tempo se torna notório que o continente se aproxima de uma ameaça real e apenas uma organização está empenhada em enfrenta-lo: a Patrulha da Noite. Definida como uma organização paramilitar que serve como linha divisória entre a área que o Reinado detém o poder – além da qual apenas habitam os ditos Selvagens – e sobrevive a milênios, independente de quem detém o comando da estrutura política, e que seu principal objetivo é a proteção da população contra uma ameaça expulsa em tempos remotos e que ameaça voltar: os Outros (uma espécie de mortos-vivos em formato humanoide). Sobrevivendo à margem do governo, recebendo poucos recursos e contingente humano por parte dos líderes políticos, a Patrulha se encontra cada vez mais frágil e sem condições de lidar com o perigo iminente. Um momento que demonstra a despreocupação dos burocratas para a ameaça é um que determinado personagem chega a ironizar a possibilidade de ataque dos Outros afirmando que, caso venha a ocorrer, seria uma boa forma de enfraquecer seus inimigos que se encontravam mais próximos do Norte (área onde inicialmente o ataque iria ocorrer).
Dentro de um universo permeado pelos conflitos em torno da soberania, são justamente os ditos Selvagens que demonstram melhor conhecer aquilo que chamamos de liberdade (se autodenominando Povo Livre). Mesmo com um menor nível de desenvolvimento, são justamente eles que conseguem reconhecer os problemas da liderança hereditária proveniente da monarquia e se formam em tribos cujos únicos líderes são aqueles escolhidos por suas partes. Talvez o grande erro da organização social em questão seja a de, mesmo possuindo uma ordem espontânea, não conseguir utiliza-la para produzir instituições (as quais não precisam ser necessariamente estatais) que ajudem na resolução de conflito, explicando a razão da sua falta de desenvolvimento do ponto de vista material, com um modo de administração da propriedade primitivo. Mesmo com as abjeções que podem ser feitas, é justamente do encontro entre eles e os personagens provenientes do “continente” que surgem alguns dos melhores diálogos da obra, demonstrando a fragilidade da suposta legitimidade existente na estrutura política por parte dos habitantes de Westeros e o quão – não obstante seu avanço em muitas outras áreas – primitivos eles são em suas crenças.
Toda obra de arte deve ser um retrato de sua época. Ao utilizar um cenário onde supostamente existe a fantasia, com direito a magias e dragões, George Martin consegue fazer uma análise das principais fraquezas da noção do Estado moderno, utilizando um suposto feudalismo como uma oportuna alegoria. Não se pode dizer que as “Crônicas de Gelo e Fogo” sejam necessariamente libertárias, e o próprio autor sendo um Democrata assumido torna esta possibilidade remota, mas esse tipo de discussão acaba por se tornar inócua. Os amantes da liberdade devem ter em mente que, a despeito de qualquer intenção, Game of Thrones consegue demonstrar como ninguém as consequências inevitáveis da atividade estatal e como a política, com suas intenções de se perpetuar e atender aos interesses do estamento burocrático, não consegue fornecer as ferramentas necessárias para que os interesses da população sejam defendidos.

TEXTO EXTRAÍDO DO BLOG liberzone.com.br.

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